Pesquisadores do International Work Group on Death, Dying and Bereavement publicaram um artigo com novas concepções sobre o luto infantil. O trabalho se propõe a ser uma espécie de manifesto para cuidadores, profissionais da saúde e professores. Entre os autores da publicação estão enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e médicos de diferentes países: Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, Israel, Nova Zelândia, Estados Unidos e Escócia.
“A pluralidade de culturas e frentes de atuação enriqueceu bastante as nossas discussões”, comenta a professora Regina Szylit, da Escola de Enfermagem (EE) e do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP. O grupo se reúne a cada 18 meses em congressos para debater as novas descobertas dentro da área de pesquisa. Na publicação, o conceito de luto infantil adotado se refere ao “processo de perda de algo que está intrinsecamente ligado ao universo daquela criança”.
Reformulando o luto
Os autores do artigo defendem a transacionalidade – processo dinâmico e intercambiável – do luto infantil. O termo aponta que tanto o ambiente apresenta interpretações e direcionamentos para a criança quanto a criança pode propor sua visão ao ambiente.
Regina Szylit comenta que, em diferentes contextos, crianças são percebidas como “quase humanos”, seres passivos que apenas assimilam comportamentos e informações passados a eles. Esse entendimento subestima a capacidade infantil de compreensão, interpretação e decisão.
Assim, a professora enfatiza que a criança é um agente ativo em seu próprio luto. Isso quer dizer que, independentemente da ação do adulto, ela terá suas próprias concepções de morte, luto e superação. O papel dos responsáveis deve ser de respeitar a autonomia da criança, elucidar possíveis dúvidas e acolhê-la.
O artigo critica as definições de luto infantil pré-estabelecidas e propõe uma nova compreensão do tema. De maneira geral, os direcionamentos de ação nos casos de crianças enlutadas classificam-se em estágios de vida. Ou seja, são indicados planos de ação específicos conforme a idade da criança. Para Regina, esse protocolo está desatualizado e não reflete mais as diferentes realidades infanto-juvenis.
Além disso, a autora aponta que os estudos sobre crianças enlutadas são predominantemente baseados em crianças brancas, de classe média, neurotípicas [que não possuem nenhuma neurodivergência, como o TEA], estadunidenses ou europeias. Ela explica que é importante que o debate também reflita outras realidades.
“No mundo atual, as vivências infantis são drasticamente diferentes, dependendo de onde a criança vive, dos espaços que frequenta e das relações familiares. Não dá para reduzir a realidade da pessoa à sua idade; o contexto deve ser considerado” Regina Szylit
Entre a morte e o “virar estrela”: o que os pesquisadores recomendam?
O Jornal da USP perguntou à Regina como respeitar a autonomia sem perder a sensibilidade com a criança. A história de que a pessoa falecida “virou estrela” é boa ou ruim? A professora explicou que a proposta do artigo é fugir de respostas binárias como certo/errado. Para ela, respeitar a autonomia da criança é compreender que a atuação deve ser baseada muito mais no contexto individual daquela pessoa do que num manual ético baseado em sua idade.
A pesquisadora diz que, assim como a autonomia de espiritualidade dos adultos é respeitada, a das crianças também deve ser. Quando a história da “estrelinha” parte da própria criança, o adulto não deve invalidar essa perspectiva. “Eu não posso desconstruir algo que é importante para a concepção de luto da criança”, diz Regina.
Por outro lado, criar e trazer essas questões imaginárias não são recomendas pela pesquisadora. Isso porque a explicação mística e espiritual pode não fazer sentido para a criança. Neste caso, o argumento apresentado pode afastar o jovem, que se sente enganado, incompreendido e isolado da compreensão que aparenta fazer sentido para todos, menos para ele.
O luto no mundo atual
Os pesquisadores observaram, especialmente, a vivência de crianças órfãs ou com doenças terminais. A professora aponta, porém, que o conceito de luto abordado no artigo se expande para outros tipos de perdas. Para ela, dado o cenário global de guerras, migrações, pandemia e mudanças climáticas, o debate e o entendimento sobre o luto infantil deve ser melhor difundido.
No Brasil, entre março de 2020 e abril de 2021, 113 mil crianças perderam seus cuidadores em função da COVID-19. Na Faixa de Gaza, pelo menos 19 mil crianças sobrevivem separadas dos pais. Na Ucrânia, cerca de 700 mil crianças foram deportadas e levadas para território russo. A autora aponta que catástrofes como as observadas em Brumadinho (2019), no Rio Grande do Sul (2023) e na Califórnia (2024), alteram a concepção do universo infantil – muitas crianças perdem familiares, casas, escolas, pertences, animais de estimação – e, portanto, um plano efetivo de contenção de danos deve considerar o luto infantil.
Fonte – USP
Foto – Fotomontagem: Freepik, Marius Arnesen / CC BY-SA 3.0 NO e Xavier Donat/Flickr / CC BY-NC-ND 2.0