Um estudo de pesquisadores da USP, da Charles University (Tchéquia) e da Saint Mary’s University (Canadá) sugere que os processos de escolha por parceiros sexuais e amorosos e de competição entre homens e entre mulheres podem estar influenciando a evolução das capacidades artísticas e atléticas humanas, confirmando o que postulou o biólogo, naturalista e geólogo Charles Darwin (1809-1882).
Em sua teorização sobre a evolução das espécies, Darwin mostrou que, além da seleção natural, os animais possuem “ornamentos” usados para atrair o sexo oposto (como as penas coloridas do pavão) e “armamentos” para enfrentar indivíduos do mesmo sexo em busca de um parceiro sexual (como os chifres dos bois). Após reunir evidências em humanos e outras linhagens, Darwin concluiu, em 1871, que a seleção sexual pode ter influenciado o aperfeiçoamento das capacidades artísticas humanas, entre outras habilidades. De maneira semelhante aos animais, os seres humanos usam diversas estratégias para atrair parceiros e intimidar concorrentes e algumas delas podem ser as suas aptidões artísticas e atléticas, como a desenvoltura ao violão ou o desempenho no futebol.
O estudo faz parte do atual projeto de pós-doutoramento do pesquisador Marco Antonio Corrêa Varella, do Instituto de Psicologia (IP) da USP. Essa etapa do trabalho contou com a colaboração das pesquisadoras Zuzana Štěrbová e Klára Bártová, da Charles University; Maryanne L. Fisher, da Saint Mary’s University; e Jaroslava V. Valentova, do IP. O objetivo do estudo foi investigar as relações entre os componentes da seleção sexual e as inclinações artísticas e atléticas de homens e mulheres.
Brasileiros e tchecos de ambos os sexos, todos heterossexuais, responderam a questionários online de forma anônima. O tamanho da amostra obtida com participantes não heterossexuais não foi suficiente para a condução das análises estatísticas. Primeiramente, os voluntários indicavam o próprio nível de talento e de experiência em cada modalidade artística ou esportiva. Foram consideradas as habilidades nas artes literárias, visuais, musicais e circenses, assim como as esportivas gerais, individuais e coletivas. Em seguida, os participantes davam respostas relacionadas a aspectos da escolha de parceiros. Essas questões indagavam sobre a atratividade física, o número de parceiros amorosos e a tendência para o sexo casual ou para relacionamentos mais duradouros e comprometidos. Nessa mesma etapa, as pessoas também eram questionadas a respeito da competição por parceiros amorosos e do seu grau de agressividade.
As análises se basearam nas correlações dessas respostas de ambas as etapas: dos indicadores dos processos de busca e competição por parceiros com o nível artístico e atlético de cada um.
Os dados foram publicados no artigo Evolution of artistic and athletic propensities: Testing of intersexual selection and intrasexual competition e está disponível no número especial do periódico internacional Frontiers of Psychology, que celebra os 150 anos do livro The descent of Man and the selection in relation to sex, publicado por Darwin em 1871. Nesse livro, o pensador propôs que a musicalidade humana evolui através da seleção sexual.
De acordo com o pesquisador, Darwin propôs nesse livro que as capacidades para música e dança nos humanos teriam seguido o mesmo padrão das outras espécies e evoluído por seleção sexual. Desde então, a ciência tem confirmado essa hipótese. A novidade dessa pesquisa foi investigar um total de 16 modalidades artísticas. Algumas delas, como o artesanato, o assobio e as artes circenses, nunca haviam sido incluídas nos estudos empíricos. Além disso, os estudos anteriores estavam muito mais focados na preferência e escolha de parceiros do que na competição entre homens e entre mulheres por parceiros amorosos. Isso também ocorre na literatura sobre as práticas esportivas, embora a noção de esporte, mais que a noção de arte, seja mais debatida como armamento evolutivo.
Contudo, Varella alerta que esse estudo não é experimental, então as causas e os efeitos não podem ser diretamente inferidos. Embora existam outras características que podem criar a relação entre esses interesses com a vida amorosa, como a personalidade, o estudo indica que as propensões artísticas e atléticas de homens e mulheres estão, pelo menos indiretamente, relacionadas a ambos os componentes da seleção sexual em humanos.
Capacidades artísticas e atléticas como “ornamentos” e “armamentos”
Em geral, o estudo encontrou dinâmicas ligeiramente diferentes em cada modalidade e para cada sexo. As mulheres podem estar usando os seus dotes artísticos como ornamentos para atrair parceiros um pouco mais do que os homens, que têm as artes mais como armamento na competição por parceiras. Por outro lado, as mulheres podem estar usando suas habilidades nos esportes para competir entre si, e os homens também, mas ainda podem usar suas habilidades atléticas para atrair o sexo oposto. Com exceção das artes musicais e visuais para os homens e dos esportes para as mulheres, as capacidades artísticas e atléticas podem funcionar tanto como ornamento quanto armamento para ambos.
Segundo Marco Varella, a literatura anterior aponta que todos os seres humanos têm capacidade de desenvolver habilidades artísticas e atléticas, embora nem todos as desenvolvam até o mesmo nível. Esse potencial não seria exclusivo de pessoas que teriam nascido com um dom especial. “O que as pessoas chamam de dom é a alta performance, que é fruto da combinação entre herança genética familiar específica e muito treinamento em contexto social favorável”, ressalta. O fato é que essas capacidades podem ter contribuído para a evolução da nossa espécie e fazem parte da natureza humana.
Tanto as capacidades atléticas quanto as artísticas contribuem para o bem-estar físico e psicológico e precisam ser incentivadas, especialmente no Brasil, que é um dos países com mais casos de ansiedade e depressão. Para reforçar esse ponto, o pesquisador cita um trecho da autobiografia de Charles Darwin: “Se eu tivesse que viver minha vida de novo, eu faria uma regra de ler alguma poesia e ouvir alguma música pelo menos uma vez por semana; pois talvez essas partes do meu cérebro agora atrofiadas seriam então mantidas ativas através do uso. A perda desses gostos é a perda da felicidade”.
Para Varella, entender as aptidões artísticas do ponto de vista evolutivo pode trazer diversos benefícios em termos de aplicações, auxiliando a introdução das artes nos tratamentos, nos hospitais, nas escolas, nos meios de comunicação, no trabalho, no comércio e na vida social como um todo. Além disso, estudos como esse podem eventualmente também impactar em como as atividades artísticas e físicas serão utilizadas no ambiente online, auxiliando os usuários na busca por parceiros.
Conhecer os precursores cognitivos, as origens, as especializações e os valores adaptativos das nossas capacidades artísticas e atléticas nos auxilia no entendimento do porquê elas são do jeito que são, e ajuda a integrar aspectos do seu desenvolvimento e funcionamento. Isso permite uma certa integração conceitual às ciências humanas e sociais, sem, com isso, cair em um reducionismo exagerado ou uma perda de autonomia explicativa de cada disciplina.
Tradicionalmente, a psicologia e a antropologia investigam como a mente humana se desenvolve desde o nascimento e como as sociedades e populações humanas funcionam, com suas particularidades e generalizações regionais e globais. A abordagem evolucionista moderna, por sua vez, adiciona perguntas que enriquecem as estruturas explicativas tradicionais das ciências humanas, nos fazendo ter uma visão mais ampla sobre os seres humanos.
Fonte – USP
Foto – Divulgação