Paiter quer dizer “nós mesmos, gente verdadeira”. É assim que os povos suruís, que vivem no Estado de Rondônia, se autodenominam. Como se essas cerca de 1.200 pessoas fossem verdadeiras e o restante de homens e mulheres, os “estrangeiros”. Concordando ou não com essa terminologia, é fato que a tradição da cerâmica produzida nas 24 aldeias onde vivem esses indígenas é única e valiosa para a cultura brasileira.
O estudo desse povo que vem sofrendo perdas significativas nas últimas quatro décadas é o objetivo de Jean-Jacques Armand Vidal no livro A Cerâmica do Povo Paiter Suruí – Continuidade e Mudança Cultural, 1970-2010. Pós-doutor em Artes Visuais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), Vidal se dedicou a entender a história dos suruís, assim como o processo de elaboração da cerâmica produzida e comercializada por eles e o caráter mitológico que ampara essa prática.
Na obra, editada pela BBM Publicações – o braço editorial da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP -, o autor explica o contexto histórico da ocupação do Norte do País por esse povo, a divisão de trabalho entre ele e os contatos com etnólogos e indigenistas. Para isso, ele utiliza referências bibliográficas que datam de 1970 a 2010 e dados coletados pela antropóloga Betty Mindlin, que atua no Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e assina o prefácio da obra.
“No caso dos suruís, como em tantos outros povos que tiveram um contato abrupto com a sociedade nacional, os resultados – de acordo com o autor – foram catastróficos. Práticas muito antigas, de grande valor utilitário e simbólico – que necessitam de conhecimentos tecnológicos apurados –, foram preservados e continuam a ser transmitidas graças às mulheres e ao apego pelos processos produtivos tradicionais que elas dominam.”
Em formato de artigo científico, Vidal aborda, com auxílio de imagens coloridas e explicativas, todo o processo de produção da cerâmica suruí. Desde a extração cuidadosa e cuidadosa da matéria-prima, citando a proteção desse processo pelo espírito do caranguejo, passando pela locomoção de até 30kg por mulher de argila para os locais de modelagem e queima, até a comercialização de produtos como anéis e pulseiras em cidades próximas, o leitor recebe as informações de maneira simplificada e objetiva. Para tal, gráficos de diferentes tipos são inseridos no livro, bem como trechos de análises de outros pesquisadores.
“A cerâmica suruí é voltada exclusivamente para a produção de peças utilitárias. Não se tem conhecimento da criação de peças decorativas produzidas por esse povo.”
Numa análise descritiva e minuciosa – como descrita pelo próprio escritor -, as mudanças na produção da cerâmica suruí são objeto de pesquisas em relação ao recorte de 40 anos escolhido. Com o auxílio de tabelas e imagens, peças são catalogadas por sua forma e componentes.
Vidal explicita os rituais seguidos por esse povo indígenas aos quais teve acesso dentro de suas limitações na pesquisa – por não falar a língua deles, a antropologia foi a base para todas as informações coletadas. Nesse ponto, ele aborda os mitos que cercam a produção da argila, como o mito do capacete de barro, que protegeria os guerreiros também de males espirituais, e o da mulher de barro, que se transformava em pote para auxiliar sua filha. Esse caráter mais lúdico do final da obra aproxima o leitor, até então preso entre tecnicidades e narrativas objetivas.
“[Os suruís] Dedicaram-se a defender suas terras através de instrumentos legais, saíram de suas aldeias para estudar, se formar como agentes da saúde para poder atuar em suas próprias aldeias.”
A obra chega nas considerações finais comparando panoramicamente a produção dos paiter suruí e explicitando a importância de se valorizar conhecimentos tradicionais como os que ele pôde observar. Apesar das poucas mudanças técnicas, as vivências desses indígenas perpassou, e continua perpassando por dificuldades por desrespeito aos seus direitos e cultura.
Fonte – USP
Foto – Divulgação