Não existe consenso sobre a quantidade segura de consumo de álcool e nem sobre a dose padrão, mas é certo que a bebida alcoólica traz inúmeros malefícios a mulheres que sofrem de transtornos alimentares. Quanto maior a quantidade de álcool, menor será a qualidade dos alimentos consumidos. A conclusão é de uma dissertação de mestrado realizada na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP. Foram avaliadas 50 mulheres, entre 18 e 59 anos, que estavam em tratamento de transtornos alimentares em serviços de assistência do Estado de São Paulo. Do grupo avaliado, 38% apresentaram consumo problemático de bebida alcoólica e baixa qualidade da alimentação, com pouca ingestão de vegetais e frutas. “O porcentual encontrado é quase três vezes mais do que entre mulheres da população brasileira [13,3%]”, relata ao Jornal da USP a nutricionista Lívia Dayane Sousa Azevedo, autora da pesquisa.
Segundo o estudo, a bulimia nervosa e a compulsão alimentar apresentam ocorrência simultânea com transtornos relacionados ao consumo de bebidas alcoólicas devido à semelhança entre a sintomatologia de ambos os quadros, como a falta de autocontrole, impulsividade e aumento de comportamento autodestrutivo.
“A compulsão alimentar é caracterizada pela ingestão de grandes quantidades de alimentos (maior do que a maioria das pessoas consumiria sob tempo e circunstâncias semelhantes), em um curto período de tempo (com duração de minutos a duas horas). Durante esse episódio, ocorre a sensação de perda de controle sobre a alimentação, como o sentimento de não conseguir parar de comer ou de controlar a quantidade consumida. Já na bulimia ocorrem a indução ao vômito, o uso de laxantes e/ou diuréticos, jejum e atividades físicas em excesso, como forma de compensar as calorias ingeridas”, explica Lívia.
Nutricionista Lívia Dayane Sousa Azevedo, autora da pesquisa – Foto: Arquivo pessoal
Nutricionista Lívia Dayane Sousa Azevedo, autora da pesquisa –
“As bebidas alcoólicas contêm calorias, às vezes, até mais do que os próprios carboidratos e proteínas, mas sem nenhum outro componente nutricional e, por isso, é considerada uma caloria vazia que sacia a forme sem nutrir o organismo”, explica a professora Rosane Pilot Pessa, do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Saúde Pública da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP) da USP e orientadora do trabalho. Sendo assim, “as mulheres com compulsão alimentar que consomem bebidas alcoólicas de maneira problemática apresentam alimentação deficiente por substituírem a ingestão de grupos alimentares importantes por álcool”, relata.
Lívia diz que essa situação é preocupante, visto que, em geral, as pacientes fazem uso contínuo de psicofármacos que atuam no sistema nervoso central. “Pode haver interação entre medicamentos, álcool e nutrientes, diminuição da eficácia desses fármacos e aumento de efeitos colaterais inesperados. O uso de álcool também pode piorar o curso e a evolução da compulsão alimentar.”
A pesquisa
Trabalhando no atendimento a pacientes com transtornos alimentares no Grupo de Assistência em Transtornos Alimentares (GRATA) do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto da USP, Lívia já havia percebido correlação entre os dois transtornos mentais, mas ainda não havia estudo que quantificasse o problema; daí surgiu a pergunta que norteou seu trabalho: o consumo de bebida alcoólica, de forma problemática, por mulheres com compulsão alimentar, afetaria a qualidade da alimentação? A resposta a essa pergunta foi positiva, mas outras informações importantes surgiram ao longo do estudo.
A coleta de dados, feita entre 2019 e 2020 em serviços de saúde especializados do interior do Estado, em Ribeirão Preto, Marília e Campinas, e na capital São Paulo, traçou o perfil dessas pacientes: a maioria (58%) estava em tratamento médico para transtorno alimentar há cerca de um ano, sendo que 68% tinha diagnóstico de bulimia nervosa e 32%, transtorno da compulsão alimentar; eram mulheres jovens (em média, 35 anos), sem companheiro, possuíam empregos formais e relataram ter ensino médio completo. Quanto ao estado nutricional, a maioria, 68%, apresentou excesso de peso, sendo 32% sobrepeso e 36% obesidade, além de risco cardiovascular elevado (62%).
As voluntárias preencheram questionários sociodemográfico (faixa etária, classe econômica, sexo, escolaridade, renda, raça) e antropométrico (peso, altura, circunferência abdominal), fizeram teste para identificar problemas no uso de álcool, além de ser verificada a compulsão alimentar e a ingestão de alimentos por meio do recordatório de 24 horas.
Alimentação inadequada
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A maioria das voluntárias, 68%, tinha alimentação que precisava ser modificada; para 16%, a ingestão de alimentos era inadequada e 66% tinham algum nível de compulsão alimentar. Entende-se por alimentação inadequada a baixa ingestão de cereais, frutas, vegetais, além de ser pouco variada, e maior consumo de fast-food, pães e alimentos processados ricos em sódio e gorduras, relata Lívia.
A qualidade da alimentação foi aferida por meio de um instrumento chamado Índice da Qualidade da Dieta – Revisado (IQD-R), que permite avaliar se as recomendações nutricionais relacionadas aos grupos alimentares, nutrientes e componentes culinários eram atendidas. A pontuação varia de zero a 100 pontos, sendo: inadequada ≤ 40 pontos; necessita de modificação de 41 a 64 pontos; e dieta saudável ≥ 65 pontos.
De acordo com essas categorias, o escore total médio da qualidade da alimentação das mulheres foi de 53,6 pontos, sendo significativamente maior (56,4 pontos) para as voluntárias que tinham uso de baixo risco de álcool ou abstinência, e menor (49,1 pontos) naquelas com uso problemático de bebidas alcoólicas. Além da diferença na pontuação total, também foi possível identificar menor consumo de vegetais entre as mulheres que ingeriam álcool de forma problemática.
Consumo problemático de álcool
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), não existe uma quantidade de consumo de álcool que seja segura, assim como não existe consenso mundial sobre a dose padrão. Porém, alguns estudos consideram o consumo problemático de álcool a ingestão de quatro ou mais doses para mulheres, e cinco ou mais doses, para homens, em uma mesma ocasião.
A dose de 30 mililitros (ml) de bebida destilada (cachaça, conhaque, uísque, vodka) ou uma lata de cerveja de 330 ml ou uma taça de vinho de 100 ml, por exemplo, corresponde a uma dose padrão com aproximadamente 10 gramas (g) de álcool puro. Para as pesquisadoras, o consumo problemático de bebida alcoólica pode ser caracterizado por aqueles que fazem aumento do consumo diário, semanal e/ou repetidos episódios de beber excessivo que, ao final, resultam em consequências prejudiciais de ordem física, psicológica e social.
No estudo, o consumo de bebidas alcoólicas foi calculado a partir da soma da pontuação obtida por uma escala chamada AUDIT, com variação de 0 a 40 pontos, sendo que: de 0 a 7 – designado a pessoas que não bebem ou fazem baixo uso do álcool (zona I); de 8 a 15 – tem uso de risco (zona II); de 16 a 19 – uso nocivo de álcool (zona III); e de 20 a 40 – têm possível dependência (zona IV). Segundo Lívia, pessoas que pontuam acima de 8 já têm consumo problemático de bebidas alcoólicas.
Baseado nestas categorias, foi demonstrado que, embora a maioria das mulheres (62%) se encontrasse na zona I, com baixo consumo de bebida alcoólica, estas tinham alimentação mais saudável, com melhor ingestão de vegetais e legumes quando comparadas às que tinham consumo de álcool nas categorias de risco (zonas II, III e IV).
Genética, meio ambiente e emoções
A professora Rosane diz que a genética poderia ser um dos fatores que influenciaria o consumo de álcool e a compulsão alimentar. Pesquisa realizada nos Estados Unidos mostrou associação entre uso de álcool e sintomas bulímicos duas vezes mais entre gêmeos monozigóticos (gêmeos idênticos, fecundados a partir de um mesmo óvulo) do que em dizigóticos (fecundados a partir de óvulos e espermatozoides diferentes).
Em relação aos fatores ambientais, alguns estudos correlacionam abuso de álcool e transtornos alimentares a experiências traumáticas estressoras vividas pelas pessoas na infância, como abuso sexual e físico, o desejo de ter um corpo ideal, o estigma de peso, pertencer a minorias sociais e culturais. Do ponto de vista emocional, o problema pode estar relacionado à impulsividade, ansiedade, depressão, afetos negativos, risco de suicídio e insatisfação com o corpo.
Homens e mulheres
Segundo Deivson Wendell da Costa Lima, enfermeiro em saúde mental e em formação de pesquisadores em álcool e outras drogas e professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), é perceptível verificar no cotidiano da prática clínica que os transtornos alimentares são mais comuns em mulheres do que nos homens, enquanto o transtorno do uso de álcool acomete mais homens do que mulheres.
A professora Rosane traz alguns dados que comprovam essa tese: a prevalência de transtornos alimentares é de nove mulheres para um homem; e o padrão de consumo problemático de bebida alcoólica ocorre mais em homens (25,3%) do que em mulheres (13,3%). Embora ressalte que nos últimos anos tenha sido evidenciado aumento do consumo problemático de bebida alcoólica entre pessoas do sexo feminino, de 11% passou para 13,3%, entre os anos de 2018 e 2019.
“Os transtornos alimentares e o transtorno do uso de álcool são tipicamente subdetectados e subtratados”, explica Lima. “Em geral, as pessoas com esses transtornos procuram ajuda quando manifestam sintomas mais graves. Existe ainda a dificuldade delas em falar sobre os sintomas de compulsão alimentar e os problemas relacionados ao uso de álcool. A existência do estigma provoca desconforto nas práticas dos profissionais e pouco envolvimento dos familiares no tratamento”, diz.
Livia explica que os resultados da pesquisa podem subsidiar ações terapêuticas precoces e estratégias para identificação de possíveis casos. “É essencial oferecer assistência multiprofissional e interdisciplinar buscando o cuidado integral e humanizado para além de comportamentos, corpos e nutrientes, considerando pessoas que possuem suas histórias de vida e emoções atravessadas por relações familiares e sociais”, completa.
Fonte – USP
Foto – Divulgação