A comissão da revista científica The Lancet abordou o tema Sinergias entre Cobertura Universal de Saúde, Segurança Sanitária e Promoção da Saúde. “A gente já diagnosticava a falta de racionalidade na alocação de recursos no campo da saúde global em cooperações internacionais. A gente já notava que aquele dinheiro, que era investido em segurança, não necessariamente estava levando em conta aspectos de promoção de saúde. Quando chega a covid-19, a gente tem, praticamente, um atestado de que nada disso estava funcionando como deveria estar, com um grande desperdício de recursos e com prioridades que nem sempre são as prioridades dos destinatários do financiamento dos programas, mas sim dos financiadores”, explica a professora Deisy Ventura da Faculdade de Saúde Pública da USP e do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário da USP, além de vice-diretora do Instituto de Relações Internacionais da USP e participante da comissão.
O objetivo era discutir o mau direcionamento de recursos de cooperações internacionais investidos no campo da saúde: “Foi uma enorme desigualdade no acesso às vacinas contra covid-19 e outros insumos. A Organização Mundial da Saúde encerrou a emergência internacional, mas disse: ‘Olha, o problema está muito longe de ser resolvido’. A gente tem que estar preparada já para uma próxima emergência. Dois dos assuntos da Assembleia Mundial da Saúde são a negociação do Acordo Internacional sobre Pandemias e a Reforma do Regulamento Sanitário Internacional. Essas questões não vão ser decididas agora, mas a gente espera que até o ano que vem a gente as tenha”, exemplifica a professora.
Processo
Um dos principais marcadores do problema da dispersão de investimento é onde o dinheiro está. Segundo Deisy, as organizações internacionais dependem da permissão dos Estados para agirem, porém, muitas vezes, também são guiadas pelo poder da doação dos investidores: “Cada vez mais os doadores influenciam na forma de gerir o dinheiro: para onde vai o dinheiro, como ele deve ser administrado, quem deve ser o canal de aplicação dos recursos. Isso acaba, muitas vezes, invertendo as prioridades de saúde pública dos países destinatários”.
Porém, não é apenas isso que impacta a área da saúde. Na comissão, o caso da crise sanitária envolvendo o vírus zika no Brasil foi apresentado por meio da campanha Mais Direitos, Menos Zika. A professora explica que, na época, o Fundo das Nações Unidas para a População conversou com governos locais e com organizações não-governamentais para melhor compreender a situação: “Tem uma forma mais construtiva de combater o zika, que é focar nos direitos das pessoas e dizer que não é só culpa do mosquito. Tem muita coisa envolvida: a falta de saneamento básico, de reconhecimento dos direitos das mulheres, da prevenção de doenças. Claro que o controle do mosquito é necessário, mas é muito mais do que apenas controlar a proliferação. Então, essa foi uma organização internacional que criou mecanismos de diálogo com governos locais e a sociedade, contornou algo que vinha predominando, esse exemplo nos parece positivo, já que uma organização foi ouvir o caso concreto”.
Ela ainda acrescenta: “É apenas uma pequena campanha num oceano de problemas e respostas equivocadas de saúde, mas ela aconteceu num momento importante e nós achamos que era um exemplo bom para alertar sobre a dimensão internacional, o quanto é importante as entidades internacionais irem conversar com os destinatários e perguntar o que, de fato, eles precisam”.
Impacto
Outro ponto abordado é a necessidade de descolonizar a saúde global: “É chocante como ainda existe essa visão do Norte querendo dizer o que o Sul precisa fazer e acho que nós, no Brasil, somos particularmente sensíveis a essas formas de colonialismo. Nós conseguimos construir o Sistema Único de Saúde, que é uma referência global. Obviamente ele não é perfeito, ele tem as suas discussões, mas ele é um exemplo extraordinário para o mundo. A gente vê colegas dizendo o que temos que fazer, querendo nos ensinar como é que devemos tratar as questões de saúde, como se eles tivessem as fórmulas prontas”, diz Deisy.
A professora coloca a relevância de não deixar o processo decisório nas mãos de locais que não têm interação direta com a situação: “O relatório da comissão diz para descolonizar mentalidades, descolonizar processos decisórios, descentralizar esses processos decisórios: não pode ser um escritório em Genebra que decide o que vai ser feito com bilhões de dólares por ano. Não se pode repetir aquela mesma fórmula de cooperação internacional que a gente já conhece, que tem efeitos muito limitados”. Ela completa: “Nós esperamos dispor de mecanismos de controle de investimentos de recursos que são feitos no campo da saúde, não apenas mecanismos de contenção da propagação de doenças”.
Fonte – USP
Foto – Divulgação




