O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa/MCTI) convidou a sua pesquisadora Ana Carla Bruno, 53, antropóloga linguista, para discutir a presença de pessoas negras na ciência brasileira e na Amazônia. Bruno reflete sobre a importância do resgate da história negra nos centros de pesquisas e universidades e como a participação dessa parcela da população pode ser ampliada enriquecendo e diversificando o fazer científico.
“Para se ter uma ciência menos racista é preciso ler autores negros, pensar e problematizar uma ciência feita por cientistas negros e pelos indígenas”, defende Ana Carla Bruno, mulher negra, pernambucana e desde 2004 pesquisadora do Inpa dedicando-se aos estudos de antropologia linguística, línguas indígenas, língua e desigualdade social e a relação língua, cultura e sociedade.
De acordo com Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a porcentagem de brasileiros que se autodeclaram de cor ou raça preta aumentou em 42% desde 2010 e representa 10,2% da população (20,7 milhões de pessoas). Na Amazônia, a parcela da população autodeclarada de cor ou raça preta é de 3,3%, são 868.419 amazônidas, um crescimento de 43,3% no mesmo período.
Bruno é graduada em História (PUC/PE), com mestrado em Linguística (2000) e doutorado em Antropologia Linguística, ambos pela Universidade do Arizona (2003). A pesquisadora também é docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas (PPGAS-Ufam). Confira a entrevista completa com a pesquisadora.
1. Como você vê a discussão sobre a presença negra na ciência brasileira?
Eu não vejo uma discussão sobre pensar a questão negra nos Institutos de Ciência e Tecnologia (ICTs) no Brasil e na história do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). É importante fazer uma reflexão e estudos sobre a presença de negros nesses espaços. A gente vem pensando isso no universo das artes, das ciências sociais, da educação superior, de ter professores negros no ensino superior, mas e nos centros de pesquisas? Isso perpassa pela educação e pelo acesso aos espaços até o negro chegar ao mestrado e doutorado. Nos últimos 12 anos, com as cotas raciais nas universidades, você teve uma presença maior de estudantes negros, mas ainda são poucos professores negros. E isso reflete nos ICTs.
2.Você teve referência de mulheres negras na sua formação e na sua carreira científica?
Estranhamente, eu não tinha pensado nisso até recentemente, como por exemplo quantos professores negros eu tive na vida, da graduação a pós, e eu tive poucos. Tive um professor negro que foi o professor de História, que me influenciou muito para fazer graduação em História. Mas nunca havia parado para pensar na presença de negros me dando aula. Fui para a universidade e não tive na graduação; e também não lembro de tê-los no mestrado e doutorado. Mas a minha orientadora de mestrado no Arizona foi uma indígena e isso foi muito significativo, ver a presença indígena forte lá, ter departamentos de indígenas nos cursos. Isso foi muito bom, mas não tive referências negras.
3.Você se considera uma referência para mulheres e meninas negras?
Eu não me via assim, mas isso mudou nos últimos cinco, seis anos. Escutando minhas alunas e vendo os seus agradecimentos, fico emocionada de ver várias dissertações e teses de alunos e alunas negras dizendo: “eu me inspiro em você”; “é muito emocionante ter você como professora”; e dizer que é possível ocupar esses espaços, porque estou lá. Então, tenho buscado “deixar minhas ementas mais negras”, “mais indígenas”, para que os corpos negros e indígenas também façam ciência. Eles sempre foram objetos da ciência, e agora vemos que eles também são produtores de ciência; e é uma das minhas formas de luta. Entendo que para termos uma ciência menos racista é preciso ter mais cientistas negros ocupando os espaços de ciência no nosso país. Não é possível que não tenhamos ecólogos, geneticistas, botânicos, entomólogos, micólogos negros. Não é que faremos uma ciência demarcada por raça e etnia, mas é importante pensar esses corpos fazendo ciência também.
4. Como é ser uma mulher cientista e negra na Amazônia?
É você sempre ser confundida com uma pessoa que trabalha para algum pesquisador. Pois no nosso país corpos negros femininos sempre ocuparam o universo do trabalho doméstico. É ruim estar num espaço no qual você vê poucas pessoas iguais a você, ter que servir de modelo para os outros. Eu me sinto numa situação na qual, ao mesmo tempo, me sinto lisonjeada por ser referência para minhas alunas, e por outro lado é ruim estar no lugar em que você é a única, é a exceção; e você queria ter outras pessoas como você com trajetórias parecidas para dialogar e pensar juntas.
5. Qual a contribuição do Inpa para promover as pautas da população negra na Amazônia?
O Inpa deu um passo importante nessa direção, com as cotas raciais em concurso público para pesquisador e tecnologista do Instituto, esta foi a primeira vez e isso pode ter gerado um certo mal-estar. Por isso digo que é preciso ter um processo de letramento e isso significa ter discussões que tragam o que é política afirmativa e pensar a presença negra na Amazônia. Vamos discutir a questão racial no país, dentro das nossas instituições; e o Inpa pode ser um propulsor para esses debates tanto sobre a presença dos negros quanto dos indígenas.
6. Que obra/ filme sobre a causa negra marcou sua vida?
O filme “Estrelas além do tempo”. Vi aquelas mulheres matemáticas negras e me emocionei muito. E o filme brasileiro “Marte um”, sobre um menino negro da periferia brasileira querendo ser astronauta e o pai insistindo para ele ser jogador de futebol. O filme diz muito da realidade social brasileira e uma criança sonhar em ser cientista é muito relevante para pensar nessa possibilidade. Também o documentário “ôrí” que fala da história dos movimentos negros no Brasil e da historiadora negra Beatriz Nascimento. Já a autora “Lélia Gonzalez” (1935 – 1994) é a minha referência para pensar o negro na sociedade brasileira. Lélia estava pensando desde meados da década de 1970, o lugar do negro e da mulher negra na sociedade brasileira e a questão da falsa democracia racial.
7. Que papel os negros ocupam na ciência brasileira?
Posso estar equivocada, pois não é minha área de conhecimento, mas no universo das ciências biológicas, muitos são colaboradores no papel de técnicos e de auxiliar de laboratórios, mas não conduzindo pesquisas. Na pandemia da Covid-19, vimos na mídia a cientista brasileira Jaqueline de Jesus, uma das coordenadoras da primeira equipe do mundo a sequenciar o genoma do coronavírus circulante na América Latina, antes disso não tenho conhecimento.
8. Como integrar o conhecimento negro à produção científica convencional?
Temos que recontar a história, ter essa memória. É importante saber quais foram os cientistas negros no nosso país, quantos existem, que espaços ocuparam e ocupam. Outra ação urgente é permitir turmas de pós-graduação mais diversas, isso enriquece. É um processo, um passo de cada vez, porém urgente. Entre meus pares de antropologia no Amazonas são poucos negros; tem alunos, mas um ou outro professor negro.
9. Na sua opinião, como a ciência trata a presença negra na Amazônia?
A Amazônia é muito diversa e complexa, mas sempre é pensada como uma Amazônia indígena, esquecendo da presença negra aqui. Se a gente quer uma ciência mais diversa, as instituições têm que passar por processos de letramento – pesquisadores, técnicos, gestores, todos, e entender essa discussão de política afirmativa, e conhecer os trabalhos da historiadora Patrícia Melo, professora da Ufam, sobre a presença negra no Amazonas.
10. Como as cotas raciais influenciam na diversidade na ciência e na pós-graduação?
A política de cotas é extremamente importante num país que tem uma população negra grande, contudo ainda tem poucas possibilidades para acessar boas universidades e ter boas formações. Eu dou aula na pós-graduação da Ufam e vejo muitas alunas negras falarem que sou a única professora negra que leciono para elas na universidade. As cotas vieram para ajudar nesse processo tão desigual. Precisamos caminhar muito ainda para ver corpos diversos nos Institutos do MCTI. Então tem que se construir editais diferenciados mesmo que incomode. E claro, no caso da pós-graduação, não é só uma questão de dar acesso, é também de permanência. Alguns PPGs do Inpa contam com vagas reservadas, cotas, mas é muito difícil para o aluno sobreviver num ambiente que não entende a trajetória de vida dele.
11. Se você fosse a ciência brasileira, qual raça se autodeclararia e qual gênero teria?
Branca e masculina, sem sombra de dúvida. Vocês já viram em algum livro didático um cientista negro? Agora, mais recentemente, tem a representação de mulheres como cientistas, mas ainda é muito difícil ter um cientista negro. Seria um homem branco, certamente.
12. Como o Dia da Consciência Negra pode promover a valorização da presença negra na sociedade brasileira e na Amazônia?
O Inpa pode contribuir refletindo sobre a presença de cientistas negros na Amazônia, sobretudo nas áreas que o Inpa desenvolve pesquisas, nas biológicas. Precisamos refletir e desconstruir essas ideias que temos da “democracia racial” no nosso país, sobretudo agora, com a entrada de novos pesquisadores negros.
Fonte – Ascom
Foto – Débora Vale/ Asco Inpa