Ciência e Tecnologia

Propostas de renda básica universal desafiam modelos tradicionais de distribuição de renda

Pesquisadores discutem a viabilidade econômica do projeto e os argumentos que o sustentam sob diferentes prismas políticos.
A renda básica surge como alternativa de redistribuição de renda via Estado.
A medida pode representar um avanço para setores marginalizados da sociedade.

Um estudo realizado pelo Instituto de Estudos Econômicos da Alemanha e pela Universidade de Economia de Viena ofereceu uma Renda Básica Incondicional de 1200 euros a 122 pessoas durante três anos. Os resultados demonstraram um aumento na qualidade de vida e na saúde, além disso, não houve queda no engajamento no trabalho por parte dos participantes. A pesquisa traz dados para um debate que periodicamente retorna à ordem do dia: a viabilidade das políticas de transferência de renda. Quem explica é Tainã Góis, doutoranda na Faculdade de Direito, e Renan Kalil, pós-doutor em Direito do Trabalho, também pela Faculdade de Direito da USP e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados.

Tainã começa por explicar o que é a ideia da Renda Básica Universal ou Incondicional: “A renda básica universal é um tipo de política pública de distribuição direta de renda, é a distribuição do Estado para as pessoas diretamente, e pretende aliviar as consequências da pobreza e reduzir as desigualdades sociais”. Ela detalha alguns pontos centrais desse tipo de política. É distribuída em dinheiro – ou seja, não é um voucher nem apresenta direcionamento para ser utilizado. É distribuída regularmente, com periodicidade. É direcionada a indivíduos universalmente – não a famílias, nem a grupos específicos. E, principalmente, é incondicionada – ou seja, não demanda nada de quem a recebe. “Basicamente, por ser um indivíduo e por ser cidadão ou cidadã daquele país, a pessoa teria direito a receber essa renda básica”.

A pesquisadora comenta que a questão é debatida por diferentes espectros políticos, e que o debate costuma se intensificar em períodos de crise econômica e agravamento das desigualdades: “Toda vez que a contradição entre o capital e o trabalho fica muito aguda, e aí tem muita concentração do dinheiro na mão das empresas, dos empregadores, e os trabalhadores têm cada vez menos renda, mais insegurança alimentar, surge, quer na esquerda, quer na direita, essa proposta de renda básica”.

Ela aponta, também, os diversos tipos de argumentos utilizados. “Os neoliberais são os primeiros da direita a fazer uma defesa teórica ao que seria a renda básica. ‘É melhor garantir uma renda mínima para aqueles que não conseguem sobreviver só do trabalho, para a gente diminuir os conflitos sociais, as greves’”. Tainã observa que a renda básica é, muitas vezes, pensada como substituição de políticas públicas, especialmente por grupos favoráveis à privatização e à redução do Estado. Por outro lado, há quem defenda a medida tendo em vista o cenário de precarização do trabalho e das desigualdades de gênero e raça: “Poderia surgir como um contrapeso ao mercado de trabalho. E poderia também ajudar a garantir uma renda melhor para trabalhadores e trabalhadoras que não estão naquele modelinho trabalhador, branco, CLT”.

Avanços tecnológicos

Outro ponto importante destacado pela pesquisadora é o atual desequilíbrio causado pelos avanços tecnológicos. “A nossa sociedade avançando na tecnologia permite com que cada vez seja possível produzir mais com menos força de trabalho, com menos horas de trabalho das pessoas. No sistema desequilibrado, isso gera maior desigualdade, porque as empresas que têm tecnologia ganham muito dinheiro e os trabalhadores que passam a ser desnecessários ficam obsoletos”.

Assim, ela aponta que a renda básica se torna uma maneira de redistribuição de renda via Estado: “Demandar cada vez mais impostos, é o que falamos de taxar as grandes fortunas, mas não taxar as grandes fortunas individuais, é taxar mais essa produção, considerando que essa produção se dá de forma social também”. Nesse sentido, Tainã demonstra a viabilidade econômica do projeto: “Demandaria uma reforma tributária que não agradaria aos mais poderosos, mas agradaria à maior parte da população. Existem algumas pesquisas que mostram que a distribuição de renda é uma medida popular porque quem vai fazer essa medida são os governantes eleitos pelo povo”.

Ela utiliza como exemplo geral o auxílio emergencial criado durante a pandemia da COVID-19, mas também cita locais com políticas similares. O município de Maricá, no Rio de Janeiro, utiliza royalties de extração de petróleo e criou uma moeda local para promover a distribuição de renda: “É um programa super bem-sucedido. A renda básica não reduz o tempo médio de trabalho das pessoas. Na verdade, em geral, ela mantém ou até aumenta. Aumenta o tempo de escolaridade das crianças. Das famílias, aumenta a qualidade da alimentação. Aumenta, inclusive, o empreendedorismo”.

A pesquisadora finaliza comentando que o Brasil é o primeiro país a ter uma lei que institui a renda básica. A Lei n.º 10.835, de 8 de janeiro de 2004, veio do então senador Eduardo Suplicy. “Está no projeto que a renda básica vai ser implementada de forma gradual e o Bolsa Família é justamente uma gradação que vem desta lei”.

Ferramenta fundamental

Renan Kalil complementa que essa política pode ser uma ferramenta fundamental para que os trabalhadores passem a disputar ofertas de emprego com menos sujeição à exploração e com maior qualidade de vida. Ele cita como exemplo os empregos em plataformas digitais, que têm crescido por serem a única alternativa para quem precisa sustentar a família, mesmo diante da precariedade: “Existindo um instrumento que já funcione como um colchão para esses trabalhadores iniciarem o mês, para que eles tenham um grau de previsibilidade a respeito da quantidade de dinheiro que vai ingressar na conta familiar, eles tendo alguma certeza a respeito disso, isso os coloca numa posição menos desconfortável”.

Nesse sentido, ele explica como a renda básica pode ser um diferencial para setores marginalizados da sociedade, especialmente mulheres, que enfrentam jornadas de trabalho duplas e têm sua qualidade de vida precarizada. Kalil reforça o aspecto libertador dessa política, ao defender que ela também permitiria a valorização do tempo livre: “Mais do que isso, outro ponto que a renda básica universal também permitiria tratar seria dos trabalhadores poderem usufruir do seu tempo livre conforme os seus interesses para além do trabalho. A vida das pessoas não pode se resumir, única e tão somente, a acordar, ir para o trabalho, passar uma grande parte do seu dia nessa atividade e voltar para casa e dormir para começar no dia seguinte um ciclo igual”.

Para o pesquisador, há um argumento econômico importante por trás da proposta. Em vez de gerar estagnação, ela dinamiza a economia: “A Renda Básica Universal, de alguma forma, gera um ciclo virtuoso para a economia, porque as pessoas que vão receber esse dinheiro não vão guardar embaixo do colchão e ficar esperando esse dinheiro render”. Kalil finaliza apontando que tudo se resume a uma escolha de prioridades sociais: “É uma questão de pensar o que a sociedade vai priorizar, do ponto de vista do que ela vai gastar, e como o orçamento público vai ser utilizado. Se a gente priorizar uma política pública de redução da desigualdade como a Renda Básica Universal permite, talvez não dê para manter, ao mesmo tempo, uma política de juros que remunere uma parcela mais restrita da sociedade que está no topo da pirâmide econômico-social”.

 

Fonte – USP

Foto – Marcos Santos / USP Imagens

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