Brincar é a principal ocupação da criança e, no mundo atual, as tecnologias se tornaram parte desta rotina e têm transformado a maneira como as crianças brincam. Um estudo recente, conduzido por especialistas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, explorou o impacto de smartphones, tablets e computadores em crianças em idade escolar, revelando que a internet tem inspirado e moldado as brincadeiras reais.
Entre os achados, confirmaram a intensa participação das crianças em plataformas digitais, especialmente YouTube, TikTok e WhastApp, consumindo jogos, danças, humor e comédia, numa clara preferência pelo lúdico, além de evidenciar a falta de segurança a que estão expostas e o comprometimento da criatividade.
A pesquisa avaliou a interação entre o virtual e o físico nas atividades recreativas de 14 crianças, sete meninos e sete meninas, de 8 a 12 anos de idade, moradoras da cidade de Ribeirão Preto, SP. O objetivo, segundo Sophya de Lima Domingos, estudante do curso de Terapia Ocupacional da FMRP que trabalhou sob orientação da professora Amanda Mota Pacciulio Sposito, foi investigar como a experiência nos ambientes digitais influencia as brincadeiras no mundo real. Para tanto, as pesquisadoras coletaram dados sobre os hábitos de consumo digital e de recreação das crianças.
Diminuição da criatividade e aumento de riscos à saúde
O estudo mostra que as crianças usam a tecnologia como entretenimento quando estão sozinhas, comportamento que, segundo a acadêmica, evidencia não só a integração do digital na recreação infantil mas também a versatilidade dessas tecnologias na ocupação do tempo livre das crianças, “diminuindo a criatividade para desenvolver brincadeiras individuais na vida real”.
As crianças relataram dificuldade em brincar sozinhas em ambiente físico. Como o brincar “proporciona uma saída para o tédio através de criações imaginativas”, o uso intensivo de dispositivos eletrônicos contemporâneos pode explicar essa dificuldade, já que “as crianças estão habituadas ao consumo de conteúdo lúdico, passivo e pré-fabricado”, alerta a pesquisadora.
Quando falam sobre as brincadeiras com pares, as crianças até citam possibilidades na vida real, mas as menções aos jogos on-line são maiores, “reforçando a persistente interconexão entre o ato de brincar e as plataformas digitais”. Com tanto tempo na frente das telas, surgem também as questões de segurança à saúde emocional e física das crianças.
Entre essas questões, Sophya destaca os desafios perigosos e as “trollagens” da internet que os participantes da pesquisa afirmaram replicar como forma de brincadeira. São atividades que em geral são apresentadas de maneira lúdica ou como jogos, “muitas vezes sem que os participantes tenham plena consciência dos possíveis danos envolvidos”, lembra a acadêmica.
Sentimentos de estresse e frustração também apareceram na pesquisa, principalmente ao participarem de jogos, fato que as pesquisadoras avaliaram como pressão que pode provocar respostas emocionais intensas, com agressividade, tristeza e hostilidade. Encontraram ainda incidentes de cyberbullying (uso de tecnologias para comportamentos hostis).
Brincar se tornou experiência híbrida
Apesar dos perigos, as atividades virtuais podem ser benéficas. As crianças relataram que os conteúdos on-line frequentemente inspiram suas brincadeiras no mundo físico. Desde criar brinquedos caseiros inspirados em jogos on-line até reproduzir cenas de suas animações favoritas, o brincar se tornou uma experiência híbrida que mescla elementos virtuais e tradicionais.
Assim, as crianças não apenas consomem, mas também produzem conteúdo para a internet. Essa atividade de criação, porém, “embora muitas vezes documente atividades lúdicas da criança e pareça inocente, revela uma preocupação com o engajamento e a resposta social que o conteúdo pode gerar”, alerta Sophya, lembrando que as crianças não possuem senso crítico desenvolvido quanto aos potenciais perigos da exposição de sua imagem pessoal.
Quanto à busca de tecnologia para compensar a solidão, por mais preocupações que ofereça aos responsáveis e à sociedade, é vista também como uma maneira da criança “mitigar a solidão e experimentar conexões virtuais que complementam suas interações face a face”, informam.
Desenvolvimento infantil e as tecnologias digitais
Mesmo com limitações, reconhecidas pelas pesquisadoras, o estudo inovou ao ouvir diretamente as crianças e obteve resultados que podem ajudar profissionais de saúde e educação a reconhecer o impacto das tecnologias digitais no brincar contemporâneo.
Mais estudos precisam ser feitos tanto para compreender quanto integrar as tecnologias digitais no desenvolvimento infantil. As pesquisadoras afirmam ser importante verificar como a moldagem do brincar pelas plataformas digitais “pode ajudar na criação de estratégias educativas e de intervenção que promovam um equilíbrio saudável entre o mundo virtual e o mundo real”.
Para Sophya e Amanda, mais que incentivar novas pesquisas, os resultados deste estudo mostram que é essencial que pais e profissionais estejam vigilantes quanto ao conteúdo acessado pelas crianças.
Fonte – USP
Foto – Divulgação