Pesquisadores da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP identificaram algumas espécies de bactérias que ainda não haviam sido detectadas na fermentação das sementes de cacau. Os dados obtidos podem contribuir para o avanço econômico e científico da cadeia de produção e comercialização do fruto, “pois permitem um conhecimento mais aprofundado dos principais microrganismos relacionados ao processo fermentativo, implicados com o sabor e o aroma dos melhores chocolates”, apontam os cientistas.
No grupo das bactérias láticas, foi identificado o genoma de Liquorilactobacillus vini. Já no grupo das bactérias acéticas, os cientistas identificaram os genomas de Komagataeibacter saccharivorans, Komagataeibacter maltaceti e Komagataeibacter melaceti. O artigo que descreve o estudo acaba de ser publicado na Revista da Sociedade Americana de Microbiologia, sendo destaque na capa do periódico.
O cacau tem papel de destaque nas exportações brasileiras. Segundo dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, o Brasil está entre os dez maiores produtores de cacau do mundo. Em 2019, foram enviados para fora do País mais de 50 milhões de toneladas de pó, manteiga ou pasta de cacau. Naquele mesmo ano, o Brasil foi reconhecido pela Organização Internacional do Cacau (ICCO) como exportador de cacau 100% fino e de aroma, que possui alto valor agregado.
Para atingir esse status e manter a competitividade no mercado mundial, os produtores, a indústria do chocolate e as agências de fomento investem em pesquisa científica e tecnológica. Um dos principais focos dos estudos, atualmente, está na fase de fermentação das sementes, pois muitas das bactérias e leveduras presentes nesse processo ainda não são conhecidas, guardando, provavelmente, o segredo do aroma marcante e da qualidade do chocolate, principal produto do cacau. E a pesquisa da FCFRP dá um passo importante nesse sentido.
Leveduras, bactérias láticas e bactérias acéticas
O biólogo Otávio Guilherme Gonçalves de Almeida, primeiro autor do artigo e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Biociências e Biotecnologia da FCFRP, explica que a fermentação do cacau é um processo espontâneo e nunca se sabe se a fermentação terminará bem ou não, pois ocorre uma sucessão de microrganismos. Segundo o biólogo, a fermentação se inicia com as leveduras que cedem seus lugares às bactérias láticas, que, por sua vez, são substituídas por bactérias acéticas na fase final da fermentação. O processo dura, em média, seis dias e as bactérias láticas dominam o cenário a partir do terceiro e quarto dias.
Segundo Almeida, é impossível prever se a microbiota local – o conjunto de microrganismos que habitam aquele ecossistema – estimulará e produzirá compostos de interesse ao longo do processo. Entre eles, estão a liberação de compostos orgânicos armazenados na semente de cacau e a formação de metabólitos relacionados à geração de aroma e sabor que são de interesse para a produção de chocolate, por exemplo. “Uma microbiota ocasional e pouco adaptada ao ambiente de fermentação pode fermentar muito pouco as sementes, resultando em um processo incompleto com pouco ou nenhum perfil sensorial de interesse. Isso pode resultar na redução da qualidade das sementes fermentadas e exigir métodos de correção na etapa de preparo do chocolate.”
Por isso, é importante determinar a composição microbiana durante o processo, verificando se há cepas mais adaptadas ao ambiente de fermentação do cacau. “Esses estudos contribuem para o futuro desenvolvimento de culturas starters, ou seja ‘coquetéis’ microbianos para padronização do processo fermentativo, sem perder a identidade geográfica, a fim de garantir a qualidade e aumentar o rendimento do produtor.
Para a professora Elaine Cristina Pereira De Martinis, que também assina o artigo, com o conhecimento da microbiota ou “cocobiota” – como vem sendo chamada por alguns pesquisadores – de cada região geográfica, pode-se ainda desvendar vias metabólicas microbianas-chaves para obtenção de sementes com um grau adequado de fermentação, e com aroma e sabor característicos. “Esses microrganismos também podem competir com outros indesejáveis e inibir suas atividades. Dessa maneira, poderíamos ter diversos tipos de chocolates beneficiados por suas microbiotas autóctones, ou seja, naturais daquela região e, portanto, bem adaptadas, com sabores característicos da região produtora, o que seria um sinônimo de produto gourmet no mercado.”
Técnicas de bioinformática
Os pesquisadores conseguiram identificar esses microrganismos comparando a diversidade microbiana durante o processo de fermentação, através da técnica de montar genomas a partir de metagenomas, isto é, de bancos de DNAs extraídos diretamente do ambiente de fermentação do cacau. “Para isso, selecionamos todos os dados públicos de metagenomas de cacau, incluindo um conjunto de dados de nossa autoria já publicado anteriormente na Food Research International.”
Com a seleção, os pesquisadores decidiram revisitar todos esses dados para avaliar se, com a tecnologia de prospecção de metagenomas de fermentação do cacau, poderiam obter novas informações a respeito da composição da microbiota, a fim de correlacionar as espécies presentes com seu respectivo potencial funcional. “Essa técnica permite avaliar a composição microbiana, ou seja, quem está ali”, dizem. E, para surpresa dos pesquisadores, estavam ali os quatro novos membros dessa comunidade microbiana da fermentação
De acordo com Almeida, outra vantagem desses achados está no aumento do número de genomas públicos disponíveis para a comparação em estudos de ecologia microbiana relacionados à biogeografia das espécies e adaptação nicho-específica. “Em outras palavras, pode-se mensurar a adaptação dos microrganismos ao ambiente do cacau comparando-os com microrganismos isolados de outras matrizes (humanos, animais, plantas e solo) e estabelecer perfis da composição diferencial de genes entre os genomas. Esses genes são marcadores nicho-específicos associados e podem revelar estratégias de adaptação da microbiota a um determinado ambiente.”
Já a professora Elaine lembra que essas ferramentas de bioinformática permitem elucidar genomas que poderiam ser difíceis ou quase impossíveis de serem acessados utilizando técnicas clássicas de cultivo em placa, “pois estima-se que 99.8% da diversidade microbiana não pode ser cultivada em laboratório”.
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Os pesquisadores destacam, ainda, que a microbiota pode ser distinta, dependendo da região geográfica e do período da safra, revestindo de maior importância o trabalho de avaliar em conjunto os microbiomas públicos disponíveis, a fim de capturar todos os genomas presentes em diversas fermentações. “Em um estudo com essa amplitude estão representados dados de diferentes variedades de cacau, bem como de várias regiões cacaueiras, do Brasil (Bahia) e de Gana (África).”
O trabalho Metagenome-Assembled Genomes Contribute to Unraveling of the Microbiome of Cocoa Fermentation tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Fonte – USP
Foto – Divulgação