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A necessidade do Código de Defesa do Contribuinte

Não é de hoje que fisco e contribuintes vivem sob tensão no Brasil. Basta lembrar que a inconfidência mineira e a guerra de Canudos, dentre outras revoltas populares, tiveram motivação tributária.

De lá para cá a complexidade do sistema tributário ganhou contornos dramáticos. Desde o advento da Constituição, foram editadas aproximadamente 36 mil normas tributárias federais, 146 mil estaduais e 259 mil municipais. Isso equivale em média a 37 normas tributárias por dia ou 1,5 por hora. Enquanto você, caro leitor, gentilmente nos concede sua atenção, uma nova norma tributária está saindo do forno.

O Banco Mundial, analisando a tributação brasileira, concluiu que “leis complexas, requisitos fiscais complicados, incidência de vários tributos sobre o mesmo fato gerador e altas cargas tributárias constituem os principais obstáculos”. Acrescente-se a esse problema um contencioso administrativo fiscal moroso, injusto e pouco transparente — conclusão do Diagnóstico do Contencioso Tributário Administrativo, pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria com a participação da Receita Federal do Brasil (RFB) e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

Em meio a esse inferno fiscal, foi apresentado, no Senado, o Projeto de Lei Complementar nº 17/22 (PLP 17/22), que prevê a necessidade de observância, pelos fiscos, de garantias mínimas em favor dos contribuintes, tais como: transparência, agilidade e (por que não?) cordialidade de tratamento.

Para citar alguns dos muitos avanços propostos, o projeto acaba, por exemplo, com a farra dos impostos travestidos de taxas, prevendo que suas respectivas leis instituidoras sejam acompanhadas de uma análise de correspondência (referibilidade), entre o valor exigido e o custo da atividade estatal. Além disso, requer um relatório prevendo a situação concreta a ser tributada. A norma também impede a responsabilização de terceiros sem a prévia demonstração, por parte do fisco, da conduta do sujeito passivo que em tese seria enquadrada como dolo, fraude ou simulação.

Embora louvável, o PLP 17/22 vem sendo demonizado pelas autoridades fiscais, a exemplo da Federação Nacional do Fisco Estadual e Distrital (Fenafisco), que o apelidou maldosamente de “Código de Defesa do Sonegador”. A reação não causa estranheza, visto que o projeto cria uma série de obrigações a serem cumpridas pelas autoridades fiscais. É natural que os fiscos estejam incomodados com as mudanças propostas, já que com sua aprovação o trabalho irá aumentar, e muito.

Embora o projeto necessite de alguns retoques, que poderão muito bem ser contemplados na forma de emendas, basta um simples passar de olhos no texto para se constatar que as indignações do fisco não se sustentam. Afinal, a norma não suprime as prerrogativas fiscalizatórias das fazendas públicas, tampouco impede a criação e cobrança de tributos. Apenas vincula tais atos a práticas condizentes com princípios constitucionais como o da eficiência, da ampla defesa e do contraditório.

A verdade — e essa sim incomoda — é que o modelo atual de constituição e cobrança do crédito tributário está falido. Em 2017, o Tribunal de Contas da União publicou um estudo demonstrando que a Receita trabalha de forma ineficiente. A arrecadação federal, mesmo batendo “recordes”, não foi capaz de ultrapassar mísero 1% em relação ao estoque da dívida ativa. Nos estados a situação não é diferente. São Paulo, maior economia do país, fechou 2021 com o estoque da dívida ativa em R$ 351 bilhões e índice de recuperação de apenas 1,07% no ano.

Não se ignora, por outro lado, que relevantes iniciativas vêm sendo tomadas para melhorar a relação fisco-contribuinte, a exemplo da bem-sucedida transação da dívida ativa federal. Contudo, ainda são necessárias reformas profundas para que os interesses das autoridades fiscais e dos particulares, ambos legítimos, possam se equilibrar.

A Fenafisco não é obrigada a concordar com o PLP 17/22, mas, considerando a sua missão de colaborar com a solução para a crise financeira dos Estados, melhor seria se propusesse emendas ao projeto, ajudando a criar um ambiente saudável e atraente para novos investimentos e, consequentemente, maior arrecadação.

Afinal, o Código de Defesa do Contribuinte não é nenhum bicho de sete cabeças. Diplomas semelhantes já existem em países com reconhecida estabilidade fiscal, como Canadá e Estados Unidos, que instituíram, há mais de 20 anos, o chamado “Taxpayer Bill of Rights”, com o objetivo precípuo de disseminar o direito do contribuinte de não pagar nem mais, nem menos do que o que é exigido pela lei.

Em Minas Gerais, o código existe desde os anos 2000 (Lei 13.515/00) e foi criado para “proteger o contribuinte contra o exercício abusivo do poder de fiscalizar, de lançar e de cobrar tributo instituído em lei”. Curiosamente, a arrecadação do Estado, sobretudo a tributária, vem aumentando expressivamente — em 2021, o aumento foi de 28,6% em relação ao ano anterior — o que comprova que os Estado apenas têm a ganhar com medidas que valorizem o contribuinte.

Muitos dos estados brasileiros, a propósito, estão dando a largada em iniciativas para simplificar a legislação tributária e aperfeiçoar a relação entre os contribuintes e a Administração, a exemplo do programa “Nos Conformes”, do estado de São Paulo.

É preciso que se compreenda, de uma vez por todas, que o contribuinte é quem paga a conta da enorme máquina pública brasileira e que (embora não só) por isso deve ser tratado com respeito. Contribuinte não é sinônimo de sonegador, não tem rabo, tridente nem cheiro de enxofre.

 

 

Fonte – Consultor Jurídico

Foto – Divulgação

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