O apelo aos direitos fundamentais quando questões religiosas estão sob julgamento é um impulso bastante comum na jurisprudência e na dogmática contemporânea. O problema desse impulso, contudo, é que ele pode promover algumas imprecisões, especialmente quando os problemas típicos de Direito Civil são levados a uma esfera que não lhes é própria.
Recentemente publicou-se um estudo casuístico mais detalhado, mostrando algumas fragilidades no tratamento jurídico do conhecido caso do Especial de Natal do grupo Porta dos Fundos. No referido caso, todo o litígio passou por uma aplicação da ponderação de princípios constitucionais supostamente colidentes (liberdade religiosa versus liberdade artística).
Concluiu-se, contudo, que, em verdade, a referida colisão jamais ocorreu e o problema envolvia uma típica discussão de responsabilidade civil tratando da ocorrência ou não de danos morais coletivos. [1] Essa discussão — dos danos morais coletivos —, embora fosse o cerne daquele problema, jamais foi feita.
Assim, alguns assuntos parecem mais propensos a esse “toque de Midas”, conforme metáfora trabalhada por Otavio Luiz Rodrigues Jr. [2] Ao se falar em liberdade religiosa, já se cria uma predisposição para que a discussão ocorra no âmbito constitucional, supondo-se que o Direito Civil não apresenta o instrumental capaz de tratar adequadamente esses problemas.
Nesse sentido que vale lembrar alguns dispositivos eventualmente esquecidos do Código Civil. Exemplo disso é o artigo 44, § 1º, que prescreve que “são livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento”.
Esse dispositivo trata de reconhecer a capacidade de gestão e organização das entidades religiosas — algo que se estende até mesmo à própria jurisdição, ao exemplo do que ocorre na Igreja Católica, que possui os seus Tribunais Eclesiásticos e o Direito Canônico. O artigo reconhece que, para o adequado funcionamento das pessoas jurídicas, faz-se necessária a tutela para que a auto-organização dessas entidades seja plena, motivo pelo qual seria possível ver aqui um pressuposto indispensável para a adequada concretização da livre associação. [3]
Autonomia
Em direção contrária aos problemas advindos desse recurso direito a princípios constitucionais aplicáveis a casos de Direito Civil — e reconhecendo a autonomia do Direito Civil parra tratar esses aspectos —, vem a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp nº 2.129.680/RJ, de relatoria da ministra Nancy Andrighi.
O referido caso trata de situação na qual o filho de um pastor moveu ação de cobrança, buscando o reconhecimento de um crédito oriundo de sua jubilação. O autor da herança foi pastor durante 35 anos e requereu, ainda em vida, o reconhecimento de sua jubilação perante os órgãos de cúpula administrativa da Igreja Assembleia de Deus. O seu pedido foi reconhecido e atendido por tais órgãos. Ocorre, contudo, que o pagamento dos valores não foi feito regularmente, ocorrendo alguns meses com percentuais inadimplidos o que motivou a cobrança.
O voto da ministra Nancy é técnico e didático. Dividido em partes, em um primeiro momento o voto trata de estabelecer a natureza jurídica das ditas “verbas sacerdotais” — côngrua(católica)/prebenda(protestante). Discorre sobre suas origens históricas e sua diferenciação; explica suas origens tributárias e como saiu do campo fiscal (no passado com um Estado confessional) para ingressar no âmbito puramente moral/natural.
Mais importante: demonstra que, embora possua uma vocação ao espectro moral, tal obrigação pode ingressar no campo da obrigação jurídica quando a organização religiosa prevê o seu pagamento de forma obrigatória, fundamentado em regulamento interno e registrado em ato formal. Há, portanto, um ponto de transição que transfigura a obrigação natural em uma obrigação jurídica.
É justamente aí que surge a tentação de se conduzir a discussão ao âmbito dos direitos fundamentais, dizendo-se que a decisão acabaria por interferir na organização da entidade. Afinal de contas, o Poder Judiciário estaria ingressando nas previsões regimentais da organização religiosa, determinando aquilo que está no foro mais profundo de sua auto-organização, que é a questão e a forma de remuneração dos seus membros.
É intuitivo imaginar aqui, portanto, que haveria uma violação ao direito fundamental de liberdade religiosa dessas organizações. Com efeito, a resposta dada na fundamentação, entretanto, foi certeira em afirmar que “o reconhecimento pelo Poder Judiciário de obrigação (de natureza contratual), assumida por pessoa jurídica de direito privado (igreja evangélica) de pagar verba de natureza alimentar (côngrua) a preposto (pastor) após ato de inativação (jubilamento) previsto em normativo interno (estatuto) e formalizada em ato interno (ata) — com base em regramentos internos e com princípios de direito contratual — não caracteriza interferência indevida do poder público na organização e funcionamento das organizações religiosa”.
Assim, ao reconhecer a obrigação assumida pela Assembleia de Deus, o Superior Tribunal de Justiça não interfere na organização religiosa; pelo contrário, reforça-a, reconhecendo a validade e dando eficácia às obrigações assumidas através de sua administração interna. Reconhece, ainda, que dentro dos seus elementos formadores, a obrigação saiu do campo natural e entrou no campo jurídico, passando a ser exigível da organização religiosa.
Não há, portanto, qualquer violação à direito fundamental e tampouco há motivo para um recurso direto ao Direito Constitucional; há uma típica relação obrigacional pactuada por uma pessoa jurídica com uma pessoa natural.
O STJ reforça, assim, a ideia de que organizações religiosas estabelecem relações contratuais das mais variadas espécies ou, ainda, podem causar e sofrer dano, estando naturalmente submetidas à responsabilidade civil. Suas ações, portanto, são fontes de direitos e obrigações privadas e não há motivos para aplicar diretamente princípios constitucionais nessas claras relações de Direito Civil. Para essas questões, o Direito Civil segue sendo o âmbito preferencial de encontro de soluções.
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
William Galle Dietrich
é advogado, professor na Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDpro) e da Rede de Direito Civil Contemporâneo.
Fonte – Conjur
Foto – Divulgação




