Na dissertação de mestrado Hábitos alimentares esmerilados pelos imigrantes japoneses do pós-guerra no Amazonas (1953-1967): a reconstrução do passado através da memória, Linda navegou pelas reminiscências da memória de imigrantes que vieram ao Brasil em busca de uma nova vida, e suas receitas.
O trabalho apresenta a reconstrução da história da imigração japonesa para o Amazonas no pós-guerra, além de análises nas perspectivas sociais e culturais, utilizando hábitos alimentares como principal ingrediente.
Os relatos, registrados em entrevistas, resultaram em uma pesquisa com foco no cotidiano de pessoas comuns que, normalmente, não seriam considerados sujeitos da História com “H” maiúsculo.
“Essa dissertação faz parte dos meus antepassados. Os que vieram antes de mim, pessoas como meus pais”, revela a especialista. Seu objetivo, por também fazer parte dessa imigração, “é deixar um legado para a posteridade” em língua portuguesa.
Como fontes primárias, Linda baseou-se especialmente nos relatos orais dos imigrantes, porém fez usos de outras fontes como fotografias, memorial escrito, edições comemorativas e reportagens jornalísticas.
Conexão Ásia – Amazonas
Devastado após a Segunda Guerra Mundial, o Japão foi alvo de inúmeros projetos de reconstrução liderados pelos vencedores aliados nas duas décadas que se seguiram. O período também marcou o início da retomada da imigração japonesa. Com foco entre 1953 e 1967, Linda buscou ouvir cidadãos japoneses espalhados pelo mundo que empreenderam viagem ao Brasil.
Alvo da dissertação, a região do Amazonas recebeu uma leva desses imigrantes num período que antecedeu a implantação da Zona Franca de Manaus pelo Decreto-lei 288 de 28 de fevereiro de 1967, época a partir da qual “os hábitos alimentares dos recém-chegados passaram por processo de transformação”, registra ela. Foi dessa data em diante que o comércio de Manaus começou a dispor de mercadorias oriundas diretamente do Japão, e entre estas, as de gêneros alimentícios como shoyu, miso, nori, kombu, wakame e biscoitos como okaki e senbei.
De acordo com a pesquisadora, o recorte escolhido “representa fatores de descontinuidade das culinárias ditas japonesas, tais como o shoyu à base de tucupi e miso de feijão de praia, enriquecidas de criatividades e inovações, guardadas sobretudo nas memórias dos imigrantes”, destaca.
Na dissertação, Linda aponta que, para o imigrante, “o distanciamento do seu país de origem suscita a percepção da identidade étnica e, nesse processo, a alimentação é a primeira a ser evocada, pois se apresenta impregnada no organismo e na memória, sendo as comidas tradicionais uma das principais formas de entrelaçamento com a terra pátria”. Nesse espírito, ela diz que buscou por “uma imigração com perspectivas diferentes, voltadas ao cotidiano – e a alimentação trabalha exatamente essa questão”.
Reiterando que o alimento não representa “apenas um elemento vital ao ser humano, mas também se configura como elemento simbólico”, a pesquisadora revela que sua fonte principal veio a partir do testemunho das pessoas que participaram do processo, sejam imigrantes, seus descendentes e também não descendentes que, de alguma forma, integram e convivem com o grupo. “No total foram 26 pessoas entre imigrantes e não descendentes que conviveram com os imigrantes”, enumera ela.
Além disso, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre alimentação nos mais diferentes aspectos, que serviu para consolidar a escolha do tema, tendo em vista “que para o ser humano o ato de alimentar ultrapassa os limites da fome”, salienta.
Um olhar de dentro
Ao trazer elementos da vida cotidiana durante o período recortado, Linda compilou memórias sobre eventos que envolvem desde o dia a dia da colheita e da cozinha, até datas especiais como festas e casamentos.
Um de seus pontos de partida começou em casa, entrevistando seus próprios pais. “Eles são o centro desse trabalho e através deles consegui o contato de outros imigrantes, alguns deles parentes ou amigos de parentes”, relembra ela. Conduzindo parte das entrevistas no chamado koronia-go (go em japonês significa ‘idioma’ e koronia é a adaptação fonética japonesa da palavra ‘colônia’, em português), Linda realizou um verdadeiro processo de tradução no registro de memórias de entrevistados cujas idades variavam entre 60 e 100 anos.
Utilizando esse idioma que tem como base a estrutura da língua japonesa e “pega empréstimos” da língua portuguesa, a pesquisadora foi atrás de receitas que, para a culinária japonesa tradicional, são completamente novas. Mas foi no decorrer dos registros desses diferentes hábitos alimentares que Linda escavou histórias pessoais que permaneciam apenas na memória já longínqua de pessoas que sobreviveram a situações drásticas. “Descobri que a maioria dos entrevistados eram imigrantes que já foram imigrantes antes da guerra. Eles viviam em colônias em fronteiras ultramarinas na Coreia, Manchúria, Filipinas…”, conta.
Descobri que a maioria dos entrevistados eram imigrantes que já foram imigrantes antes da guerra. Eles viviam em colônias em fronteiras ultramarinas na Coreia, Manchúria, Filipinas…”
Uma das entrevistas desvendou, por exemplo, a história de um imigrante que, ainda nas Filipinas, viu sua família ser dizimada e relatou episódios em que passou fome. Para Linda, “foi chocante ouvir a maneira como ele relata essas perdas por causa da guerra”.
Foram esses os cidadãos japoneses que não se adaptaram à terra natal quando foram repatriados no pós-guerra e optaram pela vida do outro lado do mundo. Nesse aspecto, “eles trazem a riqueza alimentar que não é apenas do Japão, mas é compartilhada com hábitos alimentares da Coreia, da China e das Filipinas para o Amazonas. Juntos eles trouxeram muita criatividade na alimentação”, reforça a especialista.
Na incapacidade de encontrar condimentos japoneses durante o período, os primeiros viajantes foram responsáveis pelo que Linda denominou como “ressignificação culinária”. “Várias adaptações foram feitas usando criatividade e gerando uma nova identidade que não é mais do japonês, mas do imigrante japonês no Amazonas”, sumariza. De acordo com ela, seu estudo sobre hábitos alimentares possibilitou observar representatividades sociais e culturais de um grupo étnico, com tendência a mesclar e formar novas representações.
Apesar de apresentar receitas apenas nos relatos dos entrevistados e não formalizadas em guias práticos, o trabalho pode servir como ponto de partida para uma futura catalogação das invenções culinárias que continuam a evoluir na região. Ao registrar a história por meio de seu cotidiano, Linda classificou sua investigação como “um olhar interno sobre pessoas normalmente não citadas na história tradicional”.
Do kimpirá gobô com raiz de mamão aos vários usos do tucupi para adaptação de receitas japonesas, a pesquisadora quer expandir seus estudos para mais regiões aonde os imigrantes chegaram para construir novas identidades, um ingrediente novo por vez.
O mestrado defendido em dezembro de 2017 foi orientado pela professora Leiko Matsubara Morales, do Departamento de Letras Orientais da FFLCH.
Fonte – USP